O Dia da Consciência Negra é um marco para refletir sobre o passado, valorizar a história e renovar o compromisso com a luta por igualdade racial no Brasil. Em diálogo com essa temática, Emanuel Vital — professor, jornalista e ambientalista — compartilha suas vivências e reflexões sobre a importância dessa data e o legado deixado pelo seu livro Negras e Negros do Rosário.
Fruto de uma pesquisa que se estendeu por dez anos, a obra nasceu de um desejo de preservar e dar visibilidade às histórias de uma comunidade negra que ajudou a moldar a identidade cultural de Oeiras, no Piauí. Além de revisitar os desafios enfrentados pelos moradores do bairro Rosário, Emanuel traça conexões entre questões como racismo estrutural, inclusão, justiça social e ambiental, e o papel da literatura e do jornalismo como instrumentos de transformação.
Nesta entrevista, ele revela como as memórias e trajetórias registradas no livro inspiram novas gerações e mostram que a luta pela preservação da identidade e pela igualdade é, ao mesmo tempo, resistência e celebração.
1. Como você enxerga a importância do Dia da Consciência Negra no Brasil atual?
Essa data rememora a morte de Zumbi dos Palmares, um líder quilombola que resistiu à opressão e se tornou símbolo da luta pela liberdade e dignidade dos negros no Brasil. Em um Brasil em que, apesar dos avanços, ainda persistem desigualdades gritantes entre brancos e negros, o Dia da Consciência Negra representa um lembrete necessário de que a luta por uma sociedade mais justa e igualitária é contínua. Ao celebrar a resistência e a contribuição dos negros para a construção do país, essa data é também um ponto de partida para ações concretas que busquem, de fato, reduzir as disparidades raciais e promover a inclusão. Essa data é, portanto, não apenas um momento de reflexão, mas também de ação em prol de um futuro mais equânime para todas as pessoas, independentemente de sua cor ou origem.
2. Qual foi a influência do seu contexto social e cultural em sua trajetória como professor, jornalista, escritor e ambientalista?
O espaço de vivência, o seio familiar e a busca pelo conhecimento influenciou definitivamente nossa trajetória nas citadas ocupações. A sociedade e a cultura em que estamos inseridos desempenham um papel fundamental na forma como percebemos o mundo e na maneira como nos relacionamos com ele, impactando a nossa prática profissional. Creio que o anseio de ver nossa sociedade experimentar dias melhores tenha contribuído nessas escolhas que são feitas com o intuito de auxiliar de alguma maneira com o bem estar da nossa gente em qualquer uma dessas áreas de atuação.
3. Como o racismo estrutural ainda impacta a educação e o jornalismo no Brasil?
Estruturalmente, o racismo no Brasil continua a impactar profundamente tanto a educação quanto o jornalismo, áreas que têm grande poder de moldar a percepção pública e a distribuição de oportunidades. Esse fenômeno é uma expressão de uma organização histórica e sistêmica da sociedade que marginaliza, exclui e discrimina grupos negros e indígenas em várias dimensões da vida social, política e econômica. Por exemplo, a desigualdade no acesso e na qualidade da educação afeta, sobretudo, a população negra no Brasil. Historicamente enfrenta barreiras de acesso à educação de qualidade. No tocante ao jornalismo, o racismo estrutural também se manifesta na representação da população negra nos meios de comunicação. Jornalistas negros são minoria nas redações de grandes veículos de comunicação, resultando em uma cobertura jornalística frequentemente enviesada e limitada sobre questões que afetam as comunidades negras.
4. Em sua opinião, de que maneira o movimento ambientalista e a luta pela igualdade racial se cruzam, especialmente em comunidades negras?
De diversas formas, especialmente nas comunidades negras, que muitas vezes enfrentam sobrecarga ambiental e exclusão social simultaneamente. Portanto, o movimento ambientalista e a luta pela igualdade racial se cruzam nas várias dimensões da justiça social e ambiental, e é fundamental que se reconheça que os problemas ambientais não são apenas questões ecológicas, mas também sociais e raciais. O fortalecimento de uma agenda ambiental que leve em consideração a desigualdade racial é essencial para garantir que todos, especialmente as comunidades negras, possam viver em um ambiente saudável e justo.
5. Em que aspectos a literatura e o jornalismo podem ser ferramentas eficazes para combater o racismo e promover a consciência negra?
Essa eficácia pode ser evidenciada quanto estes mecanismos dão voz e visibilidade às experiências de pessoas negras, desafiando estereótipos e narrativas preconceituosas. A literatura, por meio de histórias e personagens negros, permite um olhar profundo sobre questões raciais, enquanto o jornalismo pode investigar e expor desigualdades sistêmicas, contribuindo para uma discussão pública mais informada. Ambos podem, assim, ampliar a compreensão da realidade social e promover a reflexão crítica sobre o racismo.
6. O que motivou você a escrever o livro Negras e Negros do Rosário e como foi o processo de pesquisa para reunir as histórias de personagens marcantes desse bairro?
Na verdade, originalmente, Negras e Negros do Rosário, não era pra ser um livro, e sim, um documentário em audiovisual sobre o bairro Rosário. A ideia partiu do amigo escritor oeirense, Rogério Newton, homem muito atento e sensível às coisas da sua terra natal, Oeiras. Ele nos fez o convite para estar com ele nesse projeto e prontamente atendemos. Foram dez anos desde a pesquisa até a concepção do livro. A motivação para escrever "Negras e Negros do Rosário" foi, a busca por dar visibilidade a uma parte importante da história de Oeiras, especialmente àquelas histórias de pessoas negras que muitas vezes ficam invisibilizadas nas narrativas históricas mais amplas. O bairro do Rosário, localizado em relevo elevado, tem uma importância fundamental para a formação da identidade cultural e social do Piauí, mas muito dessa história ainda era desconhecida ou negligenciada.
A pesquisa envolveu um mergulho nas memórias da comunidade local, conversando com moradores antigos, buscando fontes orais que pudessem trazer à tona as trajetórias de figuras importantes do bairro. Essas pessoas foram fundamentais na construção da memória do Rosário, e o livro procurou destacar suas histórias, memórias estas invisíveis nos registros oficiais.
7. Quais histórias do bairro Rosário mais marcaram você durante a elaboração do livro?
Cada história contida em Negras e Negros do Rosário tem sua peculiaridade e relevância. Todas as contribuições são importantíssimas. Porém, por gostar de ouvir os mais velhos, acho que a história destes nos marcam bastante. Por ter sido a primeira entrevista que fizemos, ainda em 2014, a entrevistada, à época, no alto dos seus 97 anos, Dona Luzia Josefa da Conceição, nos encantou pela empatia e lucidez. Também no mesmo estilo, as entrevistas de Dona Maria Rodrigues, Inácia Rezadeira, dos irmãos: Zequinha Pereira e Albino Apolinário, ambos já falecidos, entre outras.
8. Como os moradores reagiram ao saber que suas histórias seriam registradas em um livro, e qual foi o impacto disso na comunidade?
Esse saber que suas histórias seriam contadas em livro, só fez acontecer com a proximidade do lançamento do livro em março de 2024. Como havia se passado dez anos, alguns entrevistados nem lembrava mais da entrevista e infelizmente outros que já haviam falecido, não viram suas páginas. No entanto, após o lançamento, percebo que o processo de escrever um livro que registra histórias de vida pode ajudar a fortalecer a identidade da comunidade. Ao compartilhar as experiências e perspectivas individuais, os moradores podem se sentir mais conectados, criando uma narrativa comum que reflete a diversidade e a complexidade da vida local.
Entendo que o impacto de registrar as histórias dos moradores em um livro foi profundo, tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. Os depoimentos de muitos moradores após a leitura de suas páginas revelam a importância desse material bibliográfico.
As reações iniciais podem ser variadas, mas o processo de preservação e compartilhamento das experiências tende a enriquecer a vida comunitária, fortalecer vínculos e gerar uma maior compreensão do passado e das dinâmicas locais.
9. Que papel o livro desempenha na preservação da memória e identidade negra em Oeiras?
Com o livro, Oeiras passou a ter registro palpável da história de sua negritude. Claro, ainda falta muito. Por isso, Rogério Newton e Eu, já pensamos em um novo volume. Ao documentar histórias, o livro pode ser uma maneira de preservar tradições, costumes, e acontecimentos importantes para a comunidade, especialmente para as gerações futuras. Isso pode ajudar a manter viva a memória coletiva e oferecer uma base sólida para o entendimento do passado local. O processo de preservação e compartilhamento das experiências tende a enriquecer a vida comunitária, fortalecer vínculos e gerar uma maior compreensão do passado e das dinâmicas locais.
10. Na sua visão, qual o papel do Dia da Consciência Negra na autoestima e na identidade dos jovens negros e de que forma Negras e Negros do Rosário contribui para isso?
O Dia da Consciência Negra é um momento de afirmação, celebração e reflexão, essencial para o fortalecimento da identidade e autoestima dos jovens negros. Ele não só ajuda a construir um espaço de reconhecimento e valorização, mas também atua como um catalisador para a ação social, buscando superar as injustiças do passado e do presente. Penso que o livro contribui nesse aspecto quando os que o buscam, possam extrair do legado dos mais velhos os exemplos de luta e superação e se inserirem cada vez mais no propósito identitário dos nossos ancestrais.
11. Para você, que lições ou valores esses personagens do bairro Rosário trazem para as novas gerações?
Principalmente os exemplos de vida, resistência, identidade e amor pelo seu torrão. Os personagens do Bairro Rosário carregam consigo uma riqueza de lições e valores que podem ser profundamente inspiradores para as novas gerações. Cada um deles representa aspectos importantes da vida comunitária, dos desafios cotidianos e das virtudes que ajudam a formar uma sociedade mais justa, solidária e empática.
12. Como você avalia o impacto e a relevância que Negras e Negros do Rosário teve ao longo do tempo para a comunidade e o público em geral?
Bem, mesmo com pouco tempo de lançado, observo a concepção deste livro de maneira positiva. A cada nova leitura que faço, já fiz várias, a cada novo lançamento, bem como de vários depoimentos de leitores Brasil a fora, observo que Negras e Negros do Rosário é um livro que tem sim sua relevância, literária, histórica e cultural. Como eu e o Rogério Newton colocamos no volume; pela primeira vez em livro, negras e negros do Rosário de Oeiras falam por si mesmos. Suas vozes contam suas histórias. Lendo-as e ouvindo-as, compreendemos quantas riquezas possuem e como apreciam questões importantes da sociedade em que construíram suas existências, inseparáveis da história e da vida do bairro negro mais antigo do Piauí.
13. Que importância você vê na criação de espaços físicos ou digitais para celebrar e preservar as memórias de bairros históricos como o Rosário?
É de extrema importância, pois esses lugares são mais do que simples áreas geográficas; eles são portadores de identidade, cultura e história. Bairros históricos, como o Rosário, são testemunhas vivas de processos históricos, sociais e culturais. Criar espaços que preservem e celebrem suas memórias ajuda a manter viva essa história, evitando o esquecimento e a descaracterização do lugar ao longo do tempo. Isso também contribui para que as gerações futuras compreendam e respeitem o passado da comunidade.
14. Como as experiências dos moradores do bairro Rosário podem influenciar as discussões sobre inclusão e representatividade negra no Brasil atual?
Essas experiências podem iluminar as questões de inclusão e representatividade negra no Brasil, trazendo à tona não apenas os desafios enfrentados por essa população, mas também suas estratégias de resistência, suas conquistas e suas formas de reafirmação de identidade e dignidade. Essas vivências são essenciais para a construção de uma sociedade mais justa, onde a diversidade racial seja plenamente reconhecida e respeitada, principalmente porque esses moradores provavelmente vivenciam as dinâmicas sociais, econômicas e políticas de uma comunidade que, historicamente, pode ter sido marginalizada.